Células-Tronco
Células-Tronco

 

INTRODUÇÃO

 

A complexidade de organização de um organismo multicelular, quando adulto, pode ser comparada a uma sociedade ideal, onde cada membro dos diferentes segmentos social necessita desempenhar satisfatoriamente a sua função, para que a mesma evolua, mantendo o equilíbrio. O mesmo ocorre com os tecidos que formam os órgãos de um organismo multicelular. São formados por conjunto de células especializadas que se diferenciaram durante a fase embrionária para desempenharem funções especificas.

 

Normalmente, os tecidos adultos são compostos por um numero de linhagens celulares distintas e irreversíveis determinadas, isto é, durante a fase embrionária, as células são designadas a seguirem uma determinada via especializada de desenvolvimento, refletindo uma alteração do caráter interno da célula. Além das células com características próprias que também mantém este tecido e se encontram entre as suas células, como as células endoteliais dos vasos sangüíneos, as células nervosas, os macrófagos ou ainda os melanócitos. Portanto, quase todo tecido é uma mistura de muitos tipos de células que devem permanecer diferentes umas das outras.

 

As células em geral têm vida mais curta que o organismo a que pertence, portanto, durante a vida adulta em quase todos os tecidos as células morrem e são substituídas, com exceção, das células nervosas e das células do músculo cardíaco, que persistem durante toda a vida sem se dividir e sem serem substituídas.

 

CÉLULA-TRONCO

 

            O estudo e a utilização de células-tronco continuam sendo uma das grandes polemicas no campo da bioética. Desde que o fisiologista alemão Theodor Schwann lançou, em 1839, as bases da teoria celular, pesquisadores de todo o mundo sentiram-se instigados com a possibilidade de gerar um organismo adulto completo a partir de apenas uma célula. Pesquisas com células-tronco avançam na busca de tratamento para muitas doenças que afetam milhões de pessoas, mas o entendimento sobre os detalhes de como um organismo completo, com inúmeros tipos diferentes de células, forma-se a partir de apenas uma célula, já data do inicio do século 20. Foi nesse período que vários embriologistas, entre eles os alemães Hans Spermann e Jacques Loeb começaram a decifrar os segredos das células-tronco por meio de experimentos com células de embriões.

 

            As pesquisas de Spermann e Loeb mostraram que quando as duas primeiras células de um embrião de anfíbio são separadas, cada uma é capaz de gerar um girino normal, e que, mesmo após as quatro primeiras divisões celulares de um embrião de anfíbio, o núcleo dessas células embrionárias ainda pode transmitir todas as informações necessárias à formação de girinos completos. Em 1996, o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado a partir do núcleo de uma célula adulta diferenciada ser capaz de gerar um indivíduo adulto normal. Foi a primeira demonstração de que a vida animal poderia surgir de outra forma, a partir do núcleo de uma única célula do corpo de um indivíduo adulto.

 

            Todo organismo pluricelular é composto por diferentes tipos de células.

 

            Todos os 200 tipos celulares distintos encontrados entre as cerca de 75 trilhões de células existentes em um homem adulto, derivam das células precursoras denominadas células-tronco, também denominadas células-mãe. São células mestras que tem a capacidade de se transformar em outros tipos de células, incluindo as do cérebro, coração, ossos, músculos e pele. O processo de geração as células especializadas - do sangue, dos ossos, dos músculos, do sistema nervoso e dos outros órgãos e tecidos humanos - é controlado pelos genes específicos na célula-tronco, mas os pesquisadores ainda não dominam todos os fatores envolvidos no processo. Compreender e controlar esse processo é um dos grandes desafios da ciência na atualidade.

 

            É fundamental que as pesquisas com células-tronco embrionárias e adultas continuem a ser feitas para que possamos te respostas para perguntas como: qual o melhor tipo de célula-tronco para ser usada em cada doença degenerativa? Qual a melhor via de introdução dessas células? Por quanto tempo duram os efeitos benéficos das terapias com células-tronco? Será necessário e possível repetir-se os procedimentos de injeção de células-tronco no mesmo paciente? Ter uma legislação permitindo o uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisa é de fundamental importância.

 

            Pesquisas recentes mostraram que células-tronco apresentam duas características básicas: são indiferenciadas e tem a capacidade de gerar não só novas células-tronco como também grande variedade de células de diferentes funções. Para realizar esta dupla tarefa (replicação e diferenciação), a célula-tronco pode seguir dois modelos básicos de divisão: o determinístico, no qual sua divisão gera sempre uma nova célula-tronco e uma diferenciada, ou aleatória (ou estocástico), no qual algumas células-tronco geram somente novas células-tronco e outras geram apenas células diferenciadas.

 

            Existem diferentes tipos de células-tronco, mas a diferença básica esta na existência de células-tronco embrionárias e células precursoras do organismo já desenvolvido, chamadas células-tronco adultas. Estas últimas recebem a denominação pós-natal por alguns cientistas, por estarem presentes em recém-nascidos e no cordão umbilical.

 

CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS

 

Em 1998 a equipe do biólogo James Thomson, na Universidade de Wisconsin (instituição que detém a maioria das patentes sobre linhagens de células-tronco humanas nos Estados Unidos) tornou o sonho biotecnológico um pouco mais real, quando conseguiu isolar as primeiras células-tronco de embriões humanos. No mesmo ano, também foram isoladas células reprodutivas primordiais de fetos, pelo embriologista John Geahart, da Universidade John Hopkins (EUA). Como as ES, as EG também são pluripotentes, ou seja, podem gerar qualquer célula do organismo adulto. A disponibilidade de células ES e EG humanas abriram horizontes impensáveis para a medicina, mas também trouxe complexos problemas ético-religiosos.

 

            As células-tronco embrionárias tem a capacidade de se transformar em praticamente qualquer célula do corpo, com exceção da placenta, e são encontradas somente nos embriões. É essa capacidade que permite que um embrião se transforme em um organismo pluricelular formado.

 

            Cerca de cinco dias após a fertilidade, o embrião humano se torna um blastócito – uma esfera com aproximadamente 100 células. As encontradas em sua camada externa vão formar a placenta e outros órgãos necessários ao desenvolvimento fetal do útero. Já as existentes em seu interior, células-tronco embrionárias, formam quase todos os tecidos do corpo. Apesar de estudadas desde o século 19, há apenas 20 anos pesquisadores conseguiram cultivar em laboratório células retirada da massa celular interna blastócitos de camundongos. Essas células conhecidas como ES podem se proliferar indefinidamente in vitro sem se diferenciar, mas também podem se diferenciar se forem modificadas as condições de cultivo. A grande conquista dos cientistas foi encontrar as condições adequadas para que as células ES proliferem e continuem indiferentes.

 

            Outra característica especial dessas células é que, quando introduzidas em embriões de camundongo, dão origem às células de todos os tecidos de um animal adulto, mesmo as germinativas (óvulos e espermatozóides). Apenas uma célula ES, no entanto, não é capaz de gerar um embrião. Isso significa que tais células não são totipotentes, como o óvulo fertilizado. O fato das células ES em embriões de camundongo gerarem tipos celulares integrante de todos os tecidos do animal adulto revela que elas têm potencial para se diferenciar também in vitro em qualquer desses tipos, de uma célula da pele a um neurônio. Vários laboratórios já conseguiram a diferenciação de células hematopoéticas (precursoras das células sanguíneas) e as do sistema nervoso (neurônios, por exemplo), entre outras. A capacidade de direcionar esse processo de diferenciação permitiria que, a partir de células-tronco embrionárias, fossem cultivadas controladamente os mais diferentes tipos celulares, abrindo a possibilidade de construir tecidos e órgãos in vitro, na placa de cultura, tornando viável a chamada bioengenharia.

 

            O potencial terapêutico das células-tronco não pode e nem deve ser desprezado. O não beneficio da utilização das células-tronco sempre existe, mas é preciso distingui-lo do malefício. Este sim seria um problema. Os testes clínicos realizados no mundo até o momento tiveram como objetivo principal afastar a possibilidade de malefícios. Até por esse motivo não se realizaram ainda testes clínicos com as células-tronco embrionárias, pois ainda não há segurança de que se injetadas em pacientes no seu estado indiferenciado elas não possam levar ao surgimento de tumores.

 

CÉLULAS-TRONCO ADULTAS

 

Em 1998, a equipe italiana liberada pela bióloga Giuliana Ferrari, do Instituto San Rafaelle-Tellethon, apresentou o primeiro relatório sobre as propriedades das células-tronco adultas. Os pesquisadores estabeleceram que células-tronco de medula óssea podem dar origem a células musculares esqueléticas e podem migrar da medula para regiões lesadas no músculo. Estudos recentes constataram que alem da pele, do intestino e da medula óssea, outros tecidos e órgãos humanos – fígado, pâncreas, músculos esqueléticos (associados ao sistema locomotor), tecido adiposo e sistema nervoso – tem um estoque de células-tronco e uma capacidade limitada de regeneração após lesões.

           

Mais recente ainda é a idéia de que essas células-tronco adultas não são apenas multipotentes (capazes de gerar os tipos celulares que compõem o tecido ou órgão especifico onde estão situadas), mas também pluripotentes (podem gerar células de outros órgãos e tecidos). A pluripontecialidade foi demonstrada pela equipe de cientistas liderados pelos neurobiólogos Christopher Bjornson, da Universidade de Washington, Seatle, USA e Angelo Vescovi, do Instituto Nacional Neurológico de Milão, Itália, em janeiro de 1999. Os pesquisadores demonstraram que uma célula-tronco adulta derivada de um tecido altamente diferenciado e com limitada capacidade de proliferação pode seguir um programa de diferenciação totalmente diverso se coloca em um ambiente adequado. Também deixou claro que o potencial de diferenciação das células-tronco adultas é limitado por sua origem embriológico: células neurais têm origem no ectoderma e células sanguíneas vêm do mesoderma embrionário. Essas pluripotencialidade das células-tronco elimina não só as questões ético-religiosas, envolvidas no emprego das células-tronco embrionárias, mas também os problemas de rejeição imunológica, já que células-tronco do próprio paciente adulto podem ser usadas para regenerar seus tecidos ou órgãos lesados. Infelizmente, a pluripotencialidade das células-tronco adultas tem sido contestada por estudo desenvolvidos em diversos laboratórios, tornando ainda mais necessário que os cientistas possam investigar o uso de células-tronco embrionárias humanas nas terapias celulares, comparando-as com as células-tronco adultas.

 

Gostaria de enfatizar que as células-tronco autólogas (do próprio individuo) de qualquer fonte não curam as doenças seja ela infecciosa, ambiental ou genética. Elas permitem que se regenere os órgãos afetados, mas se a causa da doença não for removida, o órgão será novamente lesado. Sendo assim, é importante que se possa conjugar as terapias celulares com a gênica, por exemplo, na cura de doenças de origem genética. Isto requer a manipulação genética das células-tronco do individuo para corrigir o defeito genético antes de injetá-las no paciente. Se a doença for de causa infecciosa ou ambiental é preciso que alem de terapia celular se renova o agente infeccioso ou ambiental causador da doença.

 

Existe a possibilidade da utilização de células-tronco heterólogas (de indivíduos diferentes do receptor), mas ainda há muita discussão a respeito de problemas de rejeição imunológica com estas células. Aqui novamente há ainda necessidade de muita pesquisa.                                     

Apesar de muitos cientistas desconsiderarem movimentos contrários a utilização de embriões humanos em pesquisas, a influencia desses grupos, religiosos ou não, não é pequena. Sua atuação e opinião contrarias influenciam muitos paises católicos, e fazem grande diferença para a formulação de legislação e decisões políticas. Segundo a advogada do Movimento em Prol da Vida (Movitae), Telma Queiroz, que defende a liberdade de pesquisa do Brasil; a forca do Vaticano no parlamento italiano é tão grande, que há um certo pessimismo para regular em prol da utilização de embriões humanos em pesquisa. ”Eles [os pesquisadores italianos] não conseguem enxergar possibilidades de regulamentação, tamanha é a forca do Vaticano no parlamento. Os cientistas estão deixando a Itália e lamentando ser esta uma decisão clerical e política” diz a advogada.   

 

O argumento contra a utilização de embriões humanos em pesquisa cientifica, que parte dos católicos, é de que os embriões devem ser considerados como seres humanos, pois a vida começaria no momento da concepção. A opinião, que não é exclusiva de religiosos, encontra repercussão em partidos democrata-cristãos que, na Alemanha, por exemplo, Juno com o partido verde formou forte oposição a utilização de verbas públicas da União Européia para a pesquisa com células-tronco embrionárias.

 

Algumas ONGs também defendem a oposição á pesquisa com embriões baseando-se nesse argumento. Soma-se á ele a afirmação de que é possível realizar pesquisas com células-tronco que não utilizem embriões humanos.

 

No Brasil, um grupo representante desse posicionamento é o Núcleo Fé e Cultura, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que publicou recentemente o “Manifesto contra a utilização de embriões humanos em pesquisa”, assinado por dois de seus membros, Alice Teixeira Ferreira, também coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Bioética da Unifesp e Dalton Luiz de Paula Ramos, da Universidade de São Paulo e membro correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita.

 

No manifesto, propõe-se a promoção da proteção desses embriões humanos dos processos de fecundação assistida. O erro cometido por ocasião da produção e do armazenamento dos embriões não justifica, agora, um outro erro: a utilização desses embriões em pesquisas, reduzindo-os ao status de coisas ou objetivos, afirma-se no manifesto.

 

Mas não são apenas a idéia de sacralidade da vida ou o estatuto do embrião (se deve ou não ser considerado humano) que permeiam as posições contrarias á pesquisa com embriões humanos. De acordo com Alice Teixeira, existem ainda várias questões legais envolvidas, pois a liberação da clonagem terapêutica poderia abrir cominho na legislação para que seja exigida, por exemplo, uma clonagem humana para resolver um problema de saúde de determinada pessoa. “A questão legal é uma outra razão pela qual fizemos o manifesto, para opor-se a uma tentativa de imposição de uma legislação sobre algo que não deve haver lei. Existem coisas que dependem da consciência de cada individuo”, afirma Teixeira.

           

A equipe do núcleo Fé e Cultura afirmam ainda que não exista resultados

que comprovem maior eficiência ou melhores resultados de células-tronco embrionárias, em comparação com células-tronco extraídas da medula óssea, por exemplo.

 

BIOPATENTES, EUGENIA E LUCROS.

           

Para Fátima Oliveira, o posicionamento religioso, deve ser respeitado, mas não é representativo de consensos, já que existem vários manifestos críticos apresentados em congressos e encontros de bioética, baseados em outros fundamentos. Para Oliveira a polemica em torno das células-tronco relaciona-se também com um certo aspecto mercadológico, o da industrialização da vida, e com a manipulação biológica como passo inicial para essa faceta da bioindústria. ”A clonagem terapêutica é também de produtos de células embrionárias na medicina de aprimoramento, uma medicina cuja base doutrinária, a eugenia, é racista. A pesquisa básica e aplicada, assim como as biopatentes e a mercantilização de embriões humanos são negócios rentáveis e com perspectivas de muitos lucros”.

 

Além disso, a precaução com relação á clonagem reprodutiva e terapêutica, deve-se á possibilidade das pesquisas afetaram a saúde das mulheres, sua autonomia sobre o próprio corpo e seus direitos reprodutivos. Sob esse aspecto, Oliveira vê proximidade entre as posições do governa norte-americano e da igreja católica.

 

Apesar desse posicionamento de precaução, as feministas concordam

com a pesquisa de células-tronco provenientes de adultos, do cordão umbilical e até de embriões, desde que não sejam criados exclusivamente para pesquisa. Por outro lado, também aproximam a questão da clonagem com a das novas tecnologias reprodutivas.

 

Apesar de seus questionamentos, Oliveira afirma que a tendência brasileira é de liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias em nome da corrida da ciência.

 

“Há uma pressão enorme de parte expressiva da comunidade cientifica para isso. Além da pressão sobre o governo por parte dos cientistas, existem os grupos organizados em torno de determinadas doenças, que podem se beneficiar de possíveis sucessos das pesquisas”, diz a médica.

 

A diferença de opinião entre Teixeira e Oliveira espelha também diferentes concepções da bioética no debate sobre células-tronco. Para Teixeira, a bioética é um neologismo que apareceu em 1971, e o objetivo dela consiste em estudar a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida. ”Nós temos que nos preocupar com moral e ética, e não com política. A ética é um comportamento que preocupa respeitar a pessoa humana, e nesse ponto de vista não cabe a visão política. A religião sim pode ajustar a bioética, mas não a política”, diz Teixeira.

 

Já a médica Fátima de Oliveira entende a bioética como movimento social que procura cominhos para a participação qualificada nos debates e nas decisões relativas á biotecnologia. Para ela, a bioética não tem como finalidade solucionar impasses, mas sim levantar questionamentos. “A bioética não é apolítica. Assim como a ética também não é. Ambas sofrem historicamente interferência de classe ou de gênero”, diz Oliveira.

 

Cada vez mais os embates trazidos pelas novas tecnologias colocam em evidencia os limites e a liberdade do fazer ciência, e trazem á tona serie de rupturas de conceitos e interesses de distintos grupos da sociedade.